terça-feira, 24 de novembro de 2009

A IMPRENSA REGIONAL E O PODER JUDICIAL

O tema proposto é aliciante, apesar de ter contornos delicados face às críticas que, nos últimos tempos, têm recaído sobre a Justiça e sobre os operadores da Justiça.
Para a análise e enquadramento da interpenetração entre a imprensa e o poder judicial, importa dizer que o Poder Judicial deve ser entendido, única e exclusivamente, como o mesmo é tipificado na Constituição da República Portuguesa, ou seja, os Tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo ([i]) e os juizes formam um corpo único ([ii]), sendo independentes, inamovíveis e irresponsáveis ([iii]).
Deste modo não se pode incluir, no órgão de soberania – tribunal -, o Ministério Público, que constitui um corpo de magistrados responsáveis e hierarquicamente, subordinados, com um órgão superior que é a Procuradoria-Geral da República ([iv]).
Esta distinção interessa fazer, para que se compreenda quem detém, efectivamente, o poder judicial, a quem compete o Julgamento, o qual ocorre numa fase em que a divulgação de notícias, ou a divulgação de actos processuais, deixa de ter interesse comunicacional.
Ao nível do poder político, a interactividade entre este poder e o poder da imprensa é uma realidade, como já foi amplamente dissecado no painel anterior, podendo-se mesmo falar, em algumas circunstâncias, numa promiscuidade que nada beneficia quer um quer outro dos lados.
Eduardo Dâmaso chama-lhes “siameses inseparáveis” que matam a credibilidade dos jornalistas.

Vai mais longe ao afirmar que o jornalismo que se faz em Portugal é excessivamente dominado por uma relação mais íntima com os poderes do que com a opinião pública” ([v]).
Ao nível dos Tribunais, a única realidade não provada, nem consubstanciada em verdades axiológicamente comprovadas, é a “suspeição” da “utilização” de órgãos de imprensa/comunicação social, em geral, para a divulgação pública de “eventuais ilícitos criminais” e dos seus autores, de modo a “punir socialmente” os transgressores, pelo desvalor da “ sua actuação criminosa”, ou a influenciar a actividade dos agentes políticos e dos partido ou do poder económico.
Essas fugas de informação, raiam a violação do segredo de justiça, em alguns processos, mais mediáticos- Acabando a “culpa” da violação do segredo de justiça, por morrer solteira.
Esta realidade, não confirmada, insiste-se, insere-se, normalmente, no ataque à classe política, a qual se encontra mais exposta, umas vezes por culpa própria, outras pela vontade de alguns sectores em lançar alguma suspeição, com objectivos nem sempre coincidentes com a realização da justiça.
É o afloramento da democracia de opinião, na qual os poderes do Estado se dividem entre poderes legais e poderes reais, sendo estes repartidos pelos Media e pela Opinião pública ou, como muitos defendem, a opinião publicada.
De qualquer modo e como exemplo da tentativa de utilização da imprensa para influenciar o poder judicial, passo a contar um caso concreto, um exemplo de uma tentativa utilização da imprensa regional para influenciar o poder judicial.
Num Tribunal, de uma cidade do interior centro, realizou-se uma Audiência de Julgamento, em processo-crime, no qual cerca de 15 indivíduos eram acusados de trinta e poucos crimes de furto, burla, falsificação de veículos e documentos.

Este caso, apesar de ser notícia, tendo em atenção os contornos do mesmo e dizer respeito a actos praticados naquela zona geográfica, não mereceu dos jornais, quer antes da Audiência de Julgamento, quer durante a mesma, qualquer notícia.
Para surpresa da defesa, após cerca de um mês de sessões de julgamento, nas quais a prova da acusação foi-se esvaziando, no dia marcado para as alegações finais, um jornal regional publicou, com enorme destaque, natural do ponto de vista jornalístico, a acusação deduzida contra os arguidos.
No final da Audiência de Julgamento, o jornalista que elaborou a notícia acabou por dizer, em conversa com alguns dos advogados de defesa, que a peça processual lhe tinha “caído” na secretária, na véspera e que, logicamente, publicou.
Mas foi mais longe, admitindo que tinha sido “utilizado” para fazer sair a notícia.
Ou seja, alguém tinha interesse na divulgação de factos que, por serem susceptíveis de gerar perturbação social, mesmo que não correspondessem à verdade, se tornava necessário divulgar para a sustentação da acusação deduzida.
Esta utilização da imprensa, pode tornar-se numa constante, nos locais em que, a imprensa regional tem forte influência e pode realizar, com maior certeza, os objectivos do utilizador e sempre que algum caso em julgamento seja potenciador de gerar perturbação na comunidade.
A Lei de Imprensa é aplicável aos jornais regionais e aos nacionais, mas, no âmbito da imprensa regional e uma vez que a divulgação da mesma se insere num circulo mais restrito e, igualmente, mais marcante ao nível da comunidade local, a divulgação de determinadas notícias podem ser geradoras de um desvalor mais acentuado, pelo que cabe à imprensa regional analisar cada situação e decidir se o interesse público e o dever de informar deve prevalecer sobre o bom nome e reputação ou se as notícias devem ser dadas sem que a garantia de defesa daqueles direito seja assegurada.
Como muito bem se plasma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Fevereiro de 2000, sobre um caso de difamação através da comunicação social, dirigir a alguém o epíteto de corrupto, em sociedades pequenas (de âmbito regional), pode criar uma situação duradoura e nefasta para o atingido e até para os seus familiares.
Sem esquecer que, evidentemente, o jornalista tem o dever de respeitar o rigor e a objectividade da informação e respeitar os limites ao exercício da liberdade de imprensa nos termos da Constituição e da Lei ([vi]), sendo estes deveres compaginados com as disposições constantes da lei, de exclusão da ilicitude, sempre que a divulgação dos factos vise realizar interesses legítimos ou o jornalista provar a verdade dos factos ou tiver tido fundamento sério para, de boa fé, reputar a notícia como verdadeira ([vii])
Deste modo passamos a algumas considerações, sobre uma outra situação que se coloca, constantemente, aos jornalistas, e que, caso não seja devidamente acautelada, pode enquadrar o crime de abuso de liberdade de imprensa.
Um jornalista, de um jornal regional, noticiou as opiniões veiculadas, pelos vereadores da oposição, num órgão autárquico – a Assembleia Municipal -, fortemente críticas e ofensivas da imagem e do bom nome de uma empresa pública.
A empresa em causa apresentou queixa-crime pela prática do crime de abuso de liberdade de imprensa contra o jornalista e contra o director do jornal, tendo por fundamento:
a) O jornalista não apurou a verdade dos factos, face ao melindre das acusações imputadas à empresa pública;
b) O jornalista noticiou, de forma exagerada, as declarações, cujo fundamento não podia reputar de verdadeiro.
c) O jornalista emitiu juízos de valorativos ofensivos, igualmente, do bom nome e imagem da empresa em causa;
d) O jornalista exorbitou os limites do direito de informar;
Como tal cometeu o crime de abuso de liberdade de imprensa, previsto e punido pelo artigo 25º da Lei de Imprensa, actualmente artigo 30º ([viii]) e o crime de difamação previsto e punido, actualmente pelo artigo 180º, agravado pelo artigo 183º, ambos do Código Penal ([ix]).
Por sua vez o director foi acusado nos termos do artigo 26º da Lei de Imprensa, actualmente artigo 31º.
Esta situação, que determinou uma queixa-crime, por abuso de liberdade de imprensa, leva-nos a ponderar quais os limites da divulgação de factos de que o jornalista tem conhecimento, quais as cautelas a ter nessa divulgação, como gerir o conflito de direitos merecedores da tutela constitucional - liberdade de expressão ou de imprensa ([x]) versus direitos fundamentais – intimidade da vida privada, bom nome, reputação, honra profissional ([xi]) - naquilo que o Prof. Vieira de Andrade chama do princípio da “concordância prática”([xii]), isto é, a solução para harmonizar, da melhor forma, preceitos constitucionais divergentes, os quais se devem resolver através de um critério de “proporcionalidade” na distribuição dos custos do conflito.
A gestão destas questões, a salvaguarda da verdade, o interesse público, o dever de informação sobre a verdade da imputação, tudo isto tem de ser ponderado, no dia-a-dia da actividade de um jornal, o que não é fácil, nem de fácil gestão, ainda para mais, ao nível da imprensa regional, a qual se debate com diversos problemas, por vezes mais importantes quanto à sua sobrevivência, como o porte pago, a par da envolvência dos interesses locais- Autarquias, empresas, forças vivas da região- que pode condicionar a publicitação de algumas notícias, de interesse da comunidade, mas que, pelo seu conteúdo, podem afectar esses mesmos interesses.

Da prática corrente na nossa imprensa seria mais razoável falar das relações entre quem detém o poder de investigar e a imprensa, do que entre o poder judicial e a imprensa.
É ao nível da investigação que as “notícias” interessam ao público em geral e a alguns em particular.
De qualquer modo não posso deixar de defender que, para uma melhor compreensão e informação das decisões judiciais, perante a opinião pública, seria útil que nos Tribunais existisse um assessor de imprensa, que desse os necessários esclarecimentos que permitissem uma informação mais correcta e mais fiável.
Espero que esta breve exposição tenha contribuído para uma melhor compreensão do relacionamento entre o poder judicial e a imprensa regional, certo que o mesmo não é fácil, nem deve condicionar o papel dos jornalistas e dos jornais, na descoberta de factos relevantes para a defesa das populações e dos cidadãos, numa perspectiva de melhoria da sociedade e do nosso País, bem como das comunidades locais em que os jornais regionais se inserem.

S. Vicente, 2 de Maio de 2000


[i] Artigo 202º da CRP
[ii] Artigo 215º da CRP
[iii] Artigo 216º da CRP
[iv] Artigos 219º e 220º da CRP
[v] Políticos e Jornalistas, in jornal Público de 8/4/2000
[vi] Artigo 11º do Estatuto dos Jornalistas
[vii] Artigo 180º do C. Penal, n.º 2- Vide n.º 3 e 4º
[viii] Lei 2/99 de 13/1
[ix] Anteriores artigos 164º e 167º
[x] Direitos que merecem a tutela constitucional, artigos 37º.
[xi] Direitos consagrados em sede da Lei Constitucional, artigo 26ºº
[xii] Prof. Vieira de Andrade, “Os Direito Fundamentais, na Constituição Portuguesa de 1976”, Almedina, 1987.